é bem certo
que conduzimos ao longo da
vida muitos
cadáveres de nós próprios
(CASTRO, Ferreira de. A Selva.
Rio de Janeiro, Moura Fontes, 1934.)
noite passada algo
não me deixou dormir / a princípio, imaginei que fosse o gato, mas logo
descartei tal hipótese, pois lembrei que ele se foi com as crianças / maldito
acidente/
sem poder descansar,
levantei e fui caminhar pela escuridão da noite, apesar de estar chovendo muito
/ calcei as botas que ganhei da bárbara no meu último aniversário com ela,
acendi um cigarro e saí/
imagens desconexas
tomam conta da minha cabeça: um carro, uma curva, três corpos inertes no
asfalto e eu comprando os presentes de natal / inutilidades, futilidades,
lembranças vãs que agora não passam de instrumentos de tortura / iron maiden/
voltei para casa e,
ainda sem sono, abri uma garrafa de vinho, me embriaguei e caí dormindo / no
dia seguinte, a casa toda cheirava a sexo (?), mas eu estava sozinho /
realidade,
imaginação ou insanidade? a esta altura já não sei mais quem eu sou, nem se
estou vivo ou morto / na verdade, preferiria estar morto, ao menos não ficaria
mais sozinho/
passei a tarde toda
largado no sofá da sala / não levantei nem para ir ao banheiro / controle
remoto na mão, tv a cabo, filmes subnutridos intelectualmente, mulheres nuas
anunciando o tele-sexo e um porta-retrato na estante expondo meu passado / uma
lágrima vagueia pelo meu rosto e vai morrer afogada na taça de champanhe / tristeza
não tem fim, felicidade sim/
outra noite sem
dormir / os minutos custam a passar / dava-se, então, o êxodo, mais trágico e
numeroso do que o dos antigos hebreus nos domínios da cristandade / a
insanidade bate à minha porta e eu abro / ao menos alguém se lembra de mim,
mesmo que seja para me enlouquecer e me levar de vez para junto dos meus/
escrevo estas
memórias com o objetivo de me tornar alguém, nem que para isso tenha que
morrer, pois nada é mais excitante que umas memórias póstumas / mas
infelizmente isso não acontecerá, porque ninguém ao menos sabe que eu existo /
não tenho parentes, vizinhos, nada / não tenho ninguém a quem transmitir o
legado da minha miséria/
sou um ser
solitário, sim, mas quem nunca passou por isso? quem nunca se sentiu um nada?
quem, num momento de loucura, não pensou ser deus? todas essas interrogativas
estão aí para fazê-lo pensar, caro leitor, no quanto nós, seres humanos, somos
insignificantes perante a vida/
já se passaram dois
anos do maldito acidente e ainda não consigo dormir uma noite inteira /
continuo tendo os mesmos pesadelos, minha cabeça continua formulando as mesmas
imagens desconexas: um carro, uma curva e três corpos inertes no asfalto / dois
anos já se passaram e continuo sentindo aquele cheiro insuportável de sexo (?)
pela casa, apesar de nunca mais ter conhecido ninguém que a substituísse/
bárbara...
dois anos já se
passaram e a única coisa que ainda faço regularmente é sair de casa para ir
trabalhar, mesmo que aquilo seja um martírio para mim / pessoas fúteis, q.i.
25, obsoletas/
bárbara... dois anos
já se passaram e eu ainda estou aqui: trabalho, casa, álcool, fumo,
alucinações...
dois anos já se
passaram e a única palavra que eu consigo proferir é: saudade!
noite passada tive
um pesadelo, quando acordei pensei que havia alguém em casa, na verdade era só
a sua lembrança a me atormentar / deitei na cama, abri uma garrafa de licor,
acendi um havana e cerrei os olhos / enquanto tragava e degustava o
licor, outras imagens se formaram em minha mente: posto de joelho em terra, os
meus olhos sôfregos tentaram enquadrar na sombra um corpo desnudado de uma
mulher / um véu cobria seu rosto, ficando oculto todo o tempo, impedindo que eu
desvendasse seu misterioso segredo/
cai a taça de licor
/ mancha no tapete / humo y ceniza pelo quarto / a faxineira não aparece
há meses / disse que eu estava louco e que tinha medo de ser atacada, pois
soube que eu andava falando sozinho e vendo coisas / idiota!
pobres daqueles que
vivem a mesma rotina a vida toda/
maldito acidente/
andando pela rua à
noite, tenho a sensação de estar sendo seguido e vigiado / aperto o passo /
chove / vejo um carro, uma curva e três corpos inertes no asfalto / de súbito corro
para socorrê-los / ao me aproximar, identifico-os: bárbara, meus dois filhos e,
próximo à calçada, meu gato branco...
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